sábado, 10 de janeiro de 2015

Pretensões

Amar o cansaço, o deserto,
a noite, o frio, o vazio,
todo contrário a tudo
que pareceria melhor,
bom ou quiçá agradável,
desejo estranho, mistério
forjado sem pressa

Nisso está meu empenho,
esforço contrário a tudo
que sou, talvez, contradição,
é meu contentamento,
vazio voluntário, tão grande
quando fácil é realizar-me
sem pretensões, vazio

Eis a morada do eterno
no tempo em pretérito,
memorial, altar de sombras
e sem sobras, delicioso
sabor do sacrifício
vespertino, derradeiro
antes do fim e já ao final

Deus, autor do tempo
e dele Senhor soberano,
Eu, fugaz e rendido
à fraqueza e ao ocaso
iminente, eminente,
feito princípio, início
de tudo no fim, recomeço

Enamorado de Deus
para mim o vento e
qualquer sopro do tempo
ser-me-á Sua carícia,
desejo já satisfeito
em desejos multiplicados,
ânsia incontida e gemido
silente, oração, vocação

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Letra e Forja

Nunca escrevi uma história interessante. Não dessas grandes que ganham o mundo e contratos com estúdios e gravadoras. Escrevi umas poucas, algumas que pensei que serviriam para despertar algo de bom em quem as lesse e deixei-as escondidas de um curto tempo descobertas aos contemporâneos de sua composição. Coisas da vida, vivas enquanto presentes, esquecidas quando se tornam apenas memórias. Minhas personagens e os cenários eram pobres, as histórias, talvez, demasiado curtas e pobres de detalhes que pudessem mostrar alguma pretensão de ganhar luzes, sons, atores e prateleiras. Talvez houvesse um medo de fracassar naquele tempo, medo de perder tempo criando histórias que seriam lidas por poucos e guardei as poucas e curtas que fiz. Talvez. Possibilidade pesada, arrastada sulcando os caminhos que deixo atrás de mim. Penso que o talento não pode ser pretensioso, tampouco vaidoso, escrupuloso, medíocre, rasteiro, comum ou demasiadamente maleável. Coisas difíceis de conciliar. Minha literatura, então, encaminhou-se em outra direção, mais privada que as fantasias e livros grossos, feita de pedaços pequenos, fragmentações, que grosseiramente traduzem algum pensamento, experiência ou intenção de minha alma e de minha razão. O medo que dantes fizera para mim uma cortina de sombras atrás da qual pude esconder-me fez para mim um compêndio daquilo que outrora me fez esconder-me. A prudência do tempo, a espera, a angústia de cada composição, a intenção larga e curta, baixa e rasteira, luminosa, tudo isso forjou meu coração qual lâmina incandescida e moldada a marteladas, resfriada de súbito e passada a trabalhos menos grosseiros, menos duros, mas igualmente penosos.

Escrevi mais do que poderia prever quando arrisquei pela primeira vez. Olho para trás e vejo as sementeiras preparadas com os pesos arrastados até aqui. Plantadas, já portam ramagens novas e velhas, novos frutos, colheita iminente e esperas. Daquelas virtudes que previa pesadas trago ainda poucas, o desgaste do tempo ainda não mas pôde formar por completo, e faço da espera caminho, forja inevitável do tempo e do trabalho. Alguma pretensão eu tenho, alguma ambição, mas deixo-as em silêncio, silêncio que só a morte poderá livrar da força que minha fraqueza ainda faz para rompê-lo. Talvez seja essa a verdadeira virtude, uma disposição habitual ao combate, a resistência aos golpes, voltar à forja e deixar-se moldar, sempre.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Palavra-morte

A morte me prende,
abraço que me recolhe
e cobre minhas memórias,
sepulto minhas razões
em palavras mortas
que pouco ou nada
guardam de minha
vida

Seria possível guardar
alguma fidelidade
simbólica ao pensamento,
à intuíção, à razão,
àquela iluminação
extática, à experiência
e ao silêncio?

Palavras, símbolo
ambíguo que tenho,
hipocrisia inevitável
de minha condição,
pensamento transposto,
criado em formas
deformadas de si,
palavras

Ao mistério que
me ultrapassa não
posso dar corpo,
tampouco imagem
fidedigna, pretensiosa
sim, fingimento ou
uma seta, talvez

Traio-me, contradição
de que não fujo,
escrevo-me, escrevo
o que penso, o que
não pensei, leitura
estranha agora feita
marca no tempo, rasgo
irreparável de mim

Minha forja, porém,
é minha sina, destino
que escolhi, escrever,
abismo, tentativa sempre
falha, farsa vestida
de verdade, modelável,
feita verbo, leitura

Tudo é contaminado
de mentiras, inevitável
ilusão de poder dizer
tudo, símbolo feito carne,
reflexo irrefletido
de seu motivo, texto,
pretexto para a morte
do silêncio

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Desfeito

Eu, estranhamente vivo,
movimento-me sem aparente
motivo. Eis minha angústia,
dolorosa verdade que priva-me
de certezas, vaguidão
que me perturba e move,
estranha força que me move,
vazio que não quero
e medo que faz-me fugir
de mim e do resto do mundo,
êxodo involuntário de mim,
destruição e morte, partes
de mim que encontro e perco
sem nunca ter-me inteiro
nas mãos

Estranha angústia de existir,
de saber-me frágil, volátil,
vazio que faz-me querer
preencher-me de tudo
e rasgar-me de todo, morrer
de pouco em pouco,
deixar de mim um pouco
em toda parte onde
eu por acaso passar,
recordar além do tempo
o pouco que sei, final
que me desfaz na espera
de vê-lo aproximar-se,
assim me tenho inteiro
nas mãos

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Ressonâncias

Ressonâncias de outros tempos, sons novos, sons antigos, dissonantes e palavras mortas substituindo-nos a memória, viva parte de nós aos poucos morta, esquecida. Nosso presente feito de passados infames sobrevive às custas de sonhos alegóricos, fantasias que nos atordoam a consciência e nos fazem cambalear pensando que andamos eretos, equilibrados e seguros sobre nossos próprios pés. Repetições fazem nossa segurança, clichês ecoados em lugar de nossa própria história ganham força de verdade e nos cegam, fazem-nos andar sem direção e com passo inconstante, manco, involuntário. Chamamos ordem nosso caos e progresso nossa inércia, nossa inépcia e nosso ruidoso divertimento feito de distrações que nos fazem perder de vista o essencial, preferência que damos às tantas banalidades que inventamos e que apenas nos divertem.

Escrevo dando voltas, prolixidade proposital que escolhi para repetir o movimento do mundo, este abismo de repetições, de certezas rarefeitas e sempre obsoletas, nunca dignas de crédito. Fico no exílio dos absolutos que o mundo relegou ao esquecimento querendo transformá-los em troféus de caça. Minha palavra aqui é quase vã, alcança poucos olhares, porém as deixo aqui, paradoxo de minha literatura quase invisível que escolho fazer para protestar em silêncio, lançando sementes no segredo da terra. A sombra é o lugar da revolução, é o silêncio do pensamento, da reflexão, da vida que se forma sem ser vista até que nasça, forte, retumbante, gerando dores, gritos de alegria e pasmo, gritos de medo e terror, espetáculo alardeado por gritos e cantos, silêncios outrora abafados por quem se cria autor e doutor da verdade: uns fazem de si mesmos os absolutos a que chamam obsoletos, estranha inversão que creem seja verdade irrefutável, seu próprio pensamento.

Uns pensam, outros não. Aqueles fazem silêncio.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Vazio

Vazio, morada de Deus
estranha, treva e caos
que posso tocar
Escuridão que abriga
o lume mais claro
que há, houve e haverá
Vazio, sombra epifânica
da divindade oculta,
revelada em rastros
e sombras, retalhos
vários de percepções,
interpretações,
minha sombra, treva
em que repouso e luz
que me orienta o passo
e o olhar, a paz
inamovível que sinto,
meu vazio e morada
de Deus em mim,
vazio, morada de Deus
estranha, o caos,
Sua casa, o cosmos,
Sua obra e efeito
Seu inevitável
de Sua habitação
A sombra é, pois,
para mim minha luz
e a sede saciedade,
a angústia meu repouso,
minha esperança
é já realização
Vazio, morada de Deus
estranha, meu repouso

domingo, 6 de outubro de 2013

árvores

ambiciosas árvores que tomais
de assalto céu e chão,
que pretendeis servir
a homens e animais
de provisão, abrigo,
matéria e inspiração
vós, amigas do vento
e do tempo, temporais
aventureiras imóveis,
servi, vós, como quereis
ao meu intento, ambição
que aprendi de vós,
e dái-me vosso sopro
e intrepidez, ensinai-me
de vossa sabedoria estável
o segredo, matiz e matriz
do que sois e sereis
raiz não tenho, tampouco
ramos ou folhas ou frutos,
passo, como vós e mais
que vós, como a voz
que aqui calo, terrível
destino que pressinto
e toco como se fora passado,
o tempo que não vos toca,
que não vos mata, viveis
secretamente contentes
e em silêncio, imóveis,
eternidade que desconheço,
vós, ambiciosas árvores
que tomais de assalto
céu e chão e tempo,
e vento, sobro que se esvai
de mim, de vós, de tudo,
mas vós passais em silêncio,
em segredo, sem ambições